Contos do Quotidiano

Contos do Quotidiano

quarta-feira, 25 de maio de 2016

                                                     O cabeça rapada (como eu)

Saí da paragem. Reparei pelo canto do olho, que dois rapazes corriam na minha direcção. Como já estava longe da paragem, achei que a melhor decisão era não parar para apanha-los.
Quando interromperam a corrida, um deles, o de cabeça rapada (como eu) chamou-me “filho da p…..”.
Sinto que foi para mim. Ouvi e doeu. A minha mãe (já com Deus) também não tem a culpa.
Uns metros mais há frente, tive que parar no sinal vermelho.
Reiniciaram a corrida na minha direcção. Chegados á porta da entrada, esperaram, ofegantes. O de cabeça rapada (como eu) ficou um pouco distante, na expectativa.
Abri. O que tinha cabelo lançou-me um “obrigadinho” e desapareceu para o fundo do autocarro. O de cabeça rapada (como eu), agradeceu-me com a voz duvidosa de saber se ouvi o que me doeu.

Disse-lhe: “ Escusas de agradecer, entras porque queres. Abri a porta ao teu amigo, não a ti.”   

segunda-feira, 9 de maio de 2016

"ALELUIA IRMÃ"
Entra pelo autocarro adentro em alegre cantoria.
"Aleluia sr. motorista"- Diz-me com aquele sorriso aberto sempre igual.
"Aleluia irmã"- Respondo-lhe amigavelmente.
"Tenho uma mensagem para vocês, meus irmãos, aleluia"- Gritou na direcção da multidão que enchia o autocarro.
"Aleluia irmã"- Voltei eu à carga já prevendo o desfecho.
"Ouça lá, levantei-me eu ás seis da manhã para trabalhar e tenho que estar a levar com ela? Todos os dias a mesma coisa"- Esganiça-se uma senhora indignada.
"A senhora não está fazer mal nenhum, não ofendeu ninguém"- Diz outra em defesa da pregadora.
"Aleluia irmã"- Digo mais uma vez bem alto para aquecer o ambiente.
"Não estou para aturar esta merda"- Diz a indignada que levanta-se para sair.
"Não está bem, mude-se"- Mais uma voz em defesa da pregadora.
"Sr. motorista, este autocarro está cheio de espírito mau"
"Então faça aí uma reza para acabar com o mau agoiro"- Disse-lhe na brincadeira.
Começa a falar tão depressa que se torna incompreensível. A reza passa a transe e assusto-me com os saltos que dá. Tenho a sensação que está muito nervosa com os comentários vindos do interior do autocarro. Já não fala, apenas grita.
Assim que abro a porta aproxima-se de mim com um livro volumoso que não sei se será uma bíblia  e diz "Sr. motorista, você é irmão, vai ter muita sorte, vou rezar ao Senhor por você".
"Obrigado irmã, aleluia para ti também"- Digo-lhe.  
Fiquei com a ideia que ela acreditou que sou crente, apesar de ser ateu.
Mas a alegria com que saiu a dançar e a apregoar a um Deus em que acredita deixou-me de certa forma satisfeito.
É uma personagem característica da zona da Alta de Lisboa e Lumiar que prega algo que não entendo e que não ofende ninguém apesar de incomodar alguns.
Contra os que se sentem incomodados costumo lançar o rastilho de forma a propagar um  confronto de ideias e opiniões......e é por isso que quando ela entra, digo- "Aleluia irmã".
 

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Gosto de lutar com a chuva.
Saí da Estação, chovia copiosamente. A estrada torna-se traiçoeira porque os buracos ficam camuflados com a água da chuva. Já conheço todos os buracos do caminho que faço há muito tempo mas os pneus são tão finos e frágeis que qualquer percalço torna-se num pesadelo. 
Apesar do fato impermeável, a chuva entra-me por todo o lado. Sinto-a bater-me no rosto como agulhas. Apesar do guarda lamas a água vinda da roda traseira encharca-me até aos ossos. 
Mas o esforço tudo esquece. Misturo no corpo o suor com a chuva e avanço.
A descida das Galinheiras para Frielas é feita com os travões a fundo, mas a aderência não segura o que pretendo. Sorte não ter aparecido um obstáculo, apenas o ladrar dos cães que nem estes vieram atrás de mim como habitualmente. 
A chegada a casa é feita de recriminações vindas da minha esposa. "Tu és maluco".
A roupa depois de torcida dá um alguidar de água.
Mas o duche quente retempera o físico e a alma.

  
  

terça-feira, 3 de maio de 2016

Com o autocarro completamente cheio e um calor infernal ouvi do meio da multidão de passageiros "Ligue o ar-condicionado" gritou uma voz grossa com sotaque aciganado. Ignorei-o. "Está a ouvir? Ligue o ar-condicionado" voltou á carga o cigano que nem titulo de transporte tinha.
Voltei a ignorar. "Ouça lá, porque é que não me responde? Não sou nenhum cão". Ignorei-o e pensei "Se fosses um cão até te fazia uma festinha, mas como és um javali, nem pensar".
O cigano aproximou-se da cabine do motorista e voltou a gritar um qualquer impropério que não registei porque tinha o vidro fechado para evitar levar com gatafunhos.
" Se não quer trabalhar, dê o lugar a outro"Diz-me o cigano.
Pensei, "Trabalho e ainda te pago rendimento mínimo".
Desta vez não voltei a pensar e respondi imitando-o no sotaque aciganado javalizado "Está avariadiiiiii". 

sábado, 30 de abril de 2016

Tenho que atravessar o Bairro para chegar ao meu local de trabalho. Percorro com os faróis algumas esquinas onde vislumbro vultos que nas paredes dos edifícios formam sombras humanas. Alguns são velhos, para quem a noite é apenas uma passagem rápida para o dia seguinte. Os mais novos agrupam-se numa roda de fumo onde a beata roda de mão em mão causando um efeito de serenidade. 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Assisti hoje a uma paisagem estranha na Cidade. Um vazio de pressas. 
Habituado ás tropelias das pressas incessantes dos táxis, hoje não os vi. 
Tive a sorte de não me misturar na fila interminável de protesto que mais tarde causou o caos por onde passaram. 
Os comentários dos passageiros foram no sentido desse sentimento de ausência. 
Pela minha parte, como elemento activo do movimento da Cidade não me senti constrangido com a ausência dos táxis, bem pelo contrário, senti um alivio por falta de guerrear com as manobras destes malabaristas citadinos. 
Um vazio que me aliviou a alma.

Fernando Lima, 2016  

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Entrou chorosa a miuda que não tinha mais que quinze anos. 
Sentou-se no banco da frente. 
Clicava freneticamente nas teclas do telemovel. A discussão virtual era intensa. As expressões faciais denunciavam o estado de espirito. Serenou por momentos. Um toque de aviso de mensagem transformou-lhe o rosto em preocupação. A velocidade com que movia os dedos sobre as teclas denotavam respostas rápidas ao receptor. 
Uma resposta vinda do outro lado iluminou-lhe o rosto num sorriso. 
Levantou-se. Fez o percurso da saída do autocarro sem tirar os olhos do ecrã do telemóvel. 
Sinais dos tempos desta nova era digital. 

Fernando Lima, 2016